01/02/2005 10h36 – Atualizado em 01/02/2005 10h36
Revista Época
Que LSD que nada. Jovens e, em especial, adolescentes do país inteiro têm apostado em um medicamento barato, de tarja vermelha, que produz efeitos semelhantes aos do ácido lisérgico, para fazer viagens psicodélicas e animar as baladas com um showzinho particular e exclusivo de imagens que podem fazer uma parede converter-se em um jardim multicolorido. Trata-se do popular Benflogin, que combate infecções e é indicado até para acalmar coceiras em crianças. Em altas doses o antiinflamatório, aparentemente inofensivo, é capaz de desencadear processos alucinógenos. Isso acontece graças aos efeitos psicoativos de seu princípio ativo, o cloridrato de benzidamina.
O ex-usuário Flávio Oliveira, de 23 anos, incrementava seus fins de semana com a ingestão de oito a 15 comprimidos da ”poção mágica”, tomada com bebida alcoólica ou refrigerante. ”Via raios pelo ar e até a aura das pessoas”, lembra ele, que usou o remédio dos 15 aos 17 anos. Pesquisas realizadas pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo, revelam que os meninos de rua descobriram o remédio em 1993. Os estudantes de classe média começaram a usá-lo quatro anos depois, e agora o uso virou uma febre.
No caso de Flávio, o inconveniente é que o tiro quase sempre saía pela culatra. O leque de visões que o fascinava deixava a cena em até três horas e cedia espaço aos delírios persecutórios. ”Olhava para uma roda de amigos e achava que todos falavam de mim. Pressentia que um dos caras queria me bater.” O garçom, que hoje trabalha como operador de marketing, conta que só voltava a respirar aliviado no fim da noite ou quando chegava em casa. Alguns usuários também passam a sofrer pesadelos. Segundo Elizaldo Carlini, do Cebrid, a substância aumenta a atividade do neurotransmissor dopamina (responsável pelas sensações de euforia e prazer) no sistema límbico, que regula funções cognitivas, como emoção e memória. Quando se toma uma dose excessiva dessa substância, as experiências registradas nos arquivos da memória afetiva vêm à tona, mas de forma distorcida, como uma percepção alterada da realidade. É por isso que o usuário do Benflogin, sob o efeito da droga, vê o sol virar poeira no tapete da sala e diz frases absurdas. ”Mas depois de esgotar o estoque de dopamina, ele não tem mais aquelas sensações de euforia e prazer e fica cansado e sonolento”, descreve Paulo Bertollucci, chefe do setor de neurologia do comportamento da Unifesp.
O abuso alucinógeno deixa marcas no organismo. O digitador Vagner L., de 32 anos, também pagou um preço salgado por insistir em ver a lua derretendo e jatos de luz atravessando-lhe o corpo, dez anos atrás. ”Durante um mês, sofri com as pontadas no fígado, dores de estômago e ficava com a boca roxa”, revela ele, que chegou a tomar 12 comprimidos diários, ingeridos com destilados ou café. Era só ameaçar de dar uma mordida em um hambúrguer para que a pressão baixasse, ele empalidecesse e começasse a sentir tonturas. Assustado com esses sintomas, Vagner consultou um médico. ”Parei de tomar Benflogin e não senti mais nada”, diz. Escapou em tempo. O abuso prolongado pode causar gastrite, úlcera, sangramento intestinal, convulsões e falência dos rins, adverte Antony Wong, especialista em tóxicos do Hospital das Clínicas.
Alguns médicos questionam a venda do remédio. ”O Benflogin é obsoleto”, afirma Wong. Foi desenvolvido há 40 anos e, de lá para cá, foram descobertos novos antiinflamatórios menos perigosos. Mas o uso de Benflogin nas doses prescritas pelos médicos é considerado seguro. ”Consta na bula, de forma bem clara e objetiva, que a superdosagem pode causar alucinação”, diz José Roberto Lazzarini, diretor-médico do laboratório Aché, que fabrica o produto. ”A bula também avisa que o Benflogin não deve ser associado a bebidas alcoólicas”, diz.
A maioria dos médicos concorda. ”O remédio é muito eficiente, além de barato”, diz Carlini. ”O que deveria haver é um maior controle sobre sua produção e distribuição. A receita médica deveria ficar retida na farmácia”, propõe. O que acontece é o contrário. O garçom Flávio teve uma recaída no ano passado e comprou uma caixa sem dificuldade. Dez anos depois de largar o vício, tomou dez comprimidos de uma vez, não teve nenhuma alucinação e ainda ficou de ressaca no dia seguinte.