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sábado, 10 de maio de 2025

Esquenta a batalha pela legalização do aborto no Brasil

13/01/2006 10h02 – Atualizado em 13/01/2006 10h02

Aquidauana News

Toda semana, o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo, maior centro de saúde pública do Brasil, recebe mulheres com sangramento vaginal grave.

Quase todas são adolescentes ou têm pouco mais de 20 anos. A maioria vive nas favelas que cercam a metrópole. Algumas dizem não ter idéia da causa da hemorragia. Outras contam histórias mirabolantes sobre menstruações desregradas.

Mas raramente isso é verdade. Com medo de serem denunciadas à polícia pelo hospital, elas relutam em admitir que provocaram um aborto inserindo na vagina um remédio para úlcera, vendido no mercado negro.

“Elas tentam esconder o fato de que estavam grávidas”, diz Pedro Paulo Pereira, diretor do Pronto Socorro de obstetrícia do HC. “Elas são jovens, e têm medo.”

Embora o aborto só seja permitido por lei em raras circunstâncias, o país tem uma das mais altas taxas de abortos entre os países em desenvolvimento. O Ministério da Saúde estima que 31 por cento de todas as gestações terminem dessa forma, o que equivale a 1,4 milhão de abortos por ano, a maioria clandestinos.

Nos Estados Unidos, onde o aborto é legal desde 1973, cerca de 25 por cento de todas as gestações terminam em aborto. Na Holanda, que tem uma das legislações mais liberais do mundo, a proporção é de aproximadamente 10 por cento.

Apesar dos grandes números, o aborto ainda é um assunto tabu, em parte por influência da Igreja Católica. Mas isso está mudando, pois entidades da sociedade civil e alguns médicos participam ativamente de um debate sobre o direito de a mulher interromper uma gravidez indesejada. Eles argumentam que, se a prática fosse legal, muitas mulheres deixariam de morrer devido a abortos clandestinos.

Em setembro, o governo enviou um projeto de lei ao Congresso que legaliza o aborto. Defensores da proposta, que deve passar meses sendo debatida na Câmara, reconhecem que suas chances de aprovação são remotas, mas consideram a iniciativa importante para tirar a discussão do âmbito do dogma religioso e levá-la para o aspecto social.

Se aprovado, o projeto autorizaria o aborto em até 12 semanas após a concepção, ou 20 semanas em caso de estupro. Além disso, o aborto seria possível a qualquer momento se houver risco à vida da mulher ou se o feto não tiver chance de sobrevivência após o parto.

Atualmente, o aborto só é permitido em caso de estupro ou risco à vida da mãe. Mesmo assim, é difícil conseguir um juiz que autorize a prática, e alguns médicos se recusam a cumprir a autorização, por razões religiosas.

SAÚDE PÚBLICA X DIREITO DA MULHER

A discussão sobre o aborto ocorre também em outros lugares da América Latina, embora atualmente apenas Cuba e Guiana o permitam. No mês passado, a Suprema Corte da Colômbia suspendeu a votação de um processo que tentava abrandar as leis locais sobre o tema.

Na Argentina, o Congresso está discutindo vários projetos que autorizam o aborto em alguns casos. No Uruguai, a legalização foi barrada em 2004 no Senado, por apenas três votos.

No Brasil, os ativistas tentam levar a discussão para o campo da saúde pública. “Não estamos defendendo o aborto como uma forma de controle da natalidade”, diz Dulce Xavier, membro do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. “É preciso reconhecer que as mulheres no Brasil fazem abortos e estão colocando suas vidas em risco.”

Abortos mal-sucedidos são a quarta maior causa de mortes maternas no Brasil. Em 2004, cerca de 244 mil mulheres foram atendidas em hospitais públicos devido a complicações decorrentes de abortos clandestinos, o que representou um gasto de 35 milhões de reais para o governo.

Também existe um fator ligado à desigualdade social. Mulheres de alta renda recorrem a clínicas clandestinas, porém seguras, pagando até 1.500 reais — cinco meses de salário mínimo.

Já as mulheres pobres normalmente recorrem ao medicamento Cytotec (fabricado pela Pfizer). Inserido na vagina, o Cytotec faz o útero se contrair, expelindo o embrião ou feto.

Mas o Cytotec nunca teve essa finalidade, e por isso não há testes clínicos sobre sua segurança em abortos. São frequentes as hemorragias decorrentes de seu uso, e há estudos que indicam deformações congênitas caso a técnica falhe.

“A criminalização do aborto impõe um ônus indevido às pobres, tanto em termos legais quanto de saúde”, diz Thomaz Gollop, obstetra que ajudou a redigir o novo projeto de lei.

Os médicos estimam que o Cytotec é usado em mais de 80 por cento de todos os abortos clandestinos no Brasil, embora o governo tenha proibido o medicamento para todos os usos no começo da década de 1990.

Ativistas antiaborto não discutem que há preocupação com os casos clandestinos, mas consideram que legalizar não é a solução e que o Estado não deveria aprovar o fim de uma vida humana.

“Tirar uma vida não é uma forma de responder a uma gravidez indesejada”, diz a deputada Angela Guadagnin (PT-SP), que faz campanha contra o projeto. “Não vamos deixar que isso aconteça.”

Provavelmente, não acontecerá. Após apresentar o projeto, o governo se distanciou dele. Ainda às voltas com os escândalos de corrupção, o Planalto prefere evitar atritos com o Congresso em ano eleitoral. Apesar de o PT tradicionalmente defender as causas femininas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também já sinalizou sua oposição à legalização do aborto.

Ainda assim, defensores da legalização dizem que a maré está virando a seu favor e que a mudança é inevitável. “Conseguimos fazer disso mais do que apenas uma questão da mulher”, disse Xavier, da Católicas pelo Direito de Decidir. “Esta é uma batalha que está apenas começando.”

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