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quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O repórter

16/02/2006 16h47 – Atualizado em 16/02/2006 16h47

*Miriam Névola

*Miriam NévolaNão acontecia nada na cidade. Ninguém era assassinado, ninguém sofria acidente, os vereadores cumpriam horário na câmara. Nem datas festivas tinham naquela semana. A dúvida que pairava era sobre qual seria a capa do jornal.Ele estava inquieto, os 32 copinhos de café não eram o suficiente. A redação estava nublada de tanta fumaça de cigarro. Coçando a cabeça, andando de um lado para outro, resolveu sair com o carro do jornal. Parou num bar, o balconista estranhou a sua chegada antes das 18 horas. Serviu alguns copos da gelada e ele continuava coçando a cabeça de tanto tédio. Lembrou-se da época em que não tinha tempo nem para olhar as pernas cruzadas por baixo da mesa da estagiária “gostosona”. Mal acabava de bater os dedos na máquina de escrever e já ouvia o telefone tocando, informando mais uma pauta.Ficou fulo da vida por estar desperdiçando seu talento, tempo e vontade, em uma redação de jornal às minguas. Pegou o carro e saiu. O balconista tentou alcança-lo com a conta, mas não obteve sucesso.Atravessou a quinta avenida sem perceber o semáforo vermelho. Fez a curva em terceira. Estacionou o carro em local proibido e entrou na delegacia. Perguntou ao delegado se havia ocorrências. Sim! Havia. A esperança reinou sobre aquele homem. Uma senhora foi registrar queixa do sumiço do gato Fênix de 12 anos de idade. “Que mer#%#”, pensou ele. “Com 22 anos de profissão e vou escrever sobre o sumiço de um gato!??”Entrou no carro novamente, bateu a porta com tanta força que o retrovisor do velho gol/84 caiu em seu colo. Foi até o hospital e havia uma senhora sendo atendida na UTI. A velha enfartou ao receber a notícia que Fênix foi encontrado esmagado na velha ferrovia, inutilizada há anos.Desgostoso da vida entrou pela terceira vez no carro, deu a partida e foi até a redação. Quando estava quase chegando ao jornal, parece que algo estalou em sua cabeça. “Por quem o gato foi atropelado? Ali não passa carro. Trem há tempos que estão impedidos de passar por aquela ferrovia”.Foi investigar. Procurou o antigo dono da ferrovia e perguntou se ainda passava algum trem por ali. O velho respondeu: – Ih meu filho, desde que fui obrigado a vender a ferrovia de meu pai, não sei de trem nenhum que passe por aqueles trilhos.-Obrigado? Por quem?- Eu não deveria falar sobre isso, mas, já estou tão velho que não vai me fazer mais mal algum.-Então fale.-Uma empresa me obrigou a assinar um contrato de venda da ferrovia Eles queriam os trens para eles. Me falaram que eu não poderia mais transportar meus grãos. Eu nunca fui muito entendido dessas coisas, então assinei.-Mas porque essa empresa queria a ferrovia? Quem veio falar com o senhor?-Não lembro quem, mas acho que ouvi alguém dizer algo sobre não pagar imposto. Não lembro bem meu filho, minha cabeça não anda boa.Encafifado perguntou aos vizinhos próximos a ferrovia se ouviam algum trem passando por ali. Todos diziam ouvir nada. Até que uma moça falou, pedindo todo sigilo possível.-Moço, todas as quintas-feiras, de madrugada passa um trem por aqui, é só o que posso falar.Aí estava o começo das respostas que ele queria. Esperou até a quarta-feira e a meia noite foi fazer plantão na ferrovia, com um cobertor e é claro, café e cigarros, muitos cigarros. Estava quase adormecendo quando ouviu o barulho de um trem. Pulou em um vagão de portas abertas. Estava muito escuro lá dentro, acendeu seu isqueiro e em toda sua vida nunca tinha visto tal cena. Eram muitas, mas muitas sacas de soja transportadas ilegalmente. Pegou sua câmera fotográfica e tirou umas 34 fotos. Pegou seu celular e ligou pra polícia Demorou a atender ao telefone, o delegado estava dormindo.No outro dia em todas as capas de jornais do país estavam estampadas as fotos tratadas no photoshop, sobre o escândalo envolvendo a maior empresa de grãos do Brasil. “Empresa usa ferrovia velha para transportar grãos ilegalmente na calada da noite”.Sua cansativa rotina mudou por causa daquele dia 16 de fevereiro. Ele se sentia realizado. Todos queriam homenagear esse importante homem que desmascarou a corrupção empresarial. Quem era ele? Porque não colocou seu nome nas matérias? Como era esse homem?Só o que sabiam era o seu pseudônimo. Ele assinou a reportagem e as fotos apenas como “O REPÓRTER”. 16 de fevereiro, dia do repórter. Parabéns a todos!

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