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ARTIGO: Paz do Campo e Justiça Social

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13/02/2004 13h59 – Atualizado em 13/02/2004 13h59

A anunciada visita de uma Comissão do Senado ao município de Japorã, no Mato Grosso do Sul, onde, desde dezembro do ano passado, ocorre um conflito entre indígenas e produtores rurais, não deixa de ser uma excelente oportunidade para que os parlamentares de Brasília colham subsídios e informações sobre a questão fundiária indígena desse Estado.

Sem dúvida o país carece de uma legislação mais eficiente e não pode ficar a mercê de uma política feita através de simples portarias da Funai –como bem frisou o senador Delcídio do Amaral (PT/MS) à Imprensa nessa semana. A presença da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, entretanto, a julgar pelas palavras do Senador, teria também a missão posicionar-se em relação à atuação de determinadas organizações internacionais que chegam a ameaçar nossa soberania, contra quem não poderíamos aceitar de braços cruzados as suas ações.

Com a devida vênia, o assunto que envolve as organizações não-governamentais-ONGs, sobretudo as que lidam com a chamada causa indígena, não deixa de ser instigante. Inicialmente cabe dizer que todas as ONGs, sejam elas nacionais ou estrangeiras, sobre elas, em todo o Brasil, pesa uma severa fiscalização por parte da Funai. Isso é regulamentado em Lei e, sabidamente, só entra em área indígena pessoal autorizado pelo órgão indigenista oficial e pela liderança indígena local.

Os povos indígenas, aliás, graças à experiência adquirida ao longo dos séculos de resistência aos massacres e perseguições, hoje aprenderam muito bem a se defender e a lidar com seus problemas internos e externos. E não precisou que nenhum MEC/USAID viesse ensinar o “bê-á-bá” da sobrevivência em face do chamado homem civilizado que lhe expulsou de seus territórios, vindo ele daqui mesmo do interior do Brasil.

Curiosamente, a Comissão visitante é de Relações Exteriores, que, apressada, certamente, quer inteirar-se sobre o que anda acontecendo por esses campos, como diria Almir Sater, onde o Brasil foi Paraguai. Campos empoeirados onde tranqüilamente pasta o maior rebanho bovino do País, ao lado do homem nativo esquecido desses fundões do Brasil. Precisou ser um senador do PT sul-mato-grossense para fazer nossos senadores sair de seus ambientes refrigerados e ficar sabendo deste outro Brasil indígena que lhes divisa, a distância, a vidraça do veículo blindado.

Senhores, há uma a guerra há séculos travada nesses cerrados e pantanais, entre às frentes de expansão agropecuárias e indefesas comunidades indígenas diariamente tocadas de suas terras, enxotadas por jagunços e que não tem a quem recorrer. Esse Estado, como bem sabem os senadores dessa terra, foi construído à custa do território indígena, desde o tempo da Matte Laranjeira!

Quando vejo cerca de 200 produtores acampados próximos à ponte, do lado de cá do rio Iguatemi, em pleno território Guarani-Kaiowá, reivindicando a desocupação das 14 fazendas ocupadas pelos indígenas, tenho de me perguntar: –por que tanta gente solidária? –por que sindicatos e federação mobilizados? –por que polícia federal e políticos, todos a postos?

Pois saibam, não se espantem, acho isso perfeitamente normal. É necessário que eles se unam, como sempre fizeram ao longo da história, para defender seus interesses, suas posses e seus patrimônios. Para quem sempre teve a seu lado a lei, os políticos, o capital e o poder dele emanado; para quem sempre teve a seu serviço os préstimos bancários, os melhores advogados e as sentenças mais favoráveis, não é de estranhar que ainda hoje eles vivam desse saudosismo pretérito, ainda que ultrapassado e retrógrado.

Ao lado de tanta ostentação, força e poder, era natural que ali estivesse também presente alguém que a esse povo tem dedicado atenção, a maior parte deles por caridade mesmo. A presença de funcionários da Funai, da OAB e de ONGs no local, devem ser entendidas como manifestações de solidariedade à causa. O coração dessa gente, com certeza, está do outro lado do rio, mais além, junto ao povo Guarani-Kaiowá.

Desde há muito os povos indígenas não têm com quem contar. O Estado, desde o tempo do SPI, só para lembrar um período mais recente da história, configurou-se no maior obstáculo para a garantia e manutenção de seus territórios: quando não tomavam de assalto suas terras soltando o gado e assim os afugentava, se valiam, como escreveu Diógenes Santos Abreu, das disputas judiciais com a compra do juiz, dos agrimensores, dos funcionários dos cartórios; em desespero de causa, recorriam alguns até ao assassinato.

Sem ter a quem recorrer, eis que ONGs, a maioria delas ligadas à entidades religiosas católicas e protestantes, surgem e oferece solidariedade aos povos indígenas. Mais do que isso, diante de um Estado omisso, prestam ajuda humanitária de relevância tamanha que logo seus sentimentos e intenções são percebidos pelos indígenas como verdadeiras, sendo incorporados à práxis interna das comunidades com zelo e discrição.

Ao contrário do que se possa imaginar –e olha lá o Estado enciumado, que desde 1996 também recebe recursos da cooperação alemã para demarcar terras indígenas, sobretudo na Amazônia Legal–, essas ONGs conhecem a caminhada e as lutas desses povos; abrem-lhes espaço como sujeito e protagonistas de sua própria história, desenvolvem projetos de sustentação econômica e cultural. Desfilam livres e sem seguranças por entre as aldeias, e isso, por que falam a sua linguagem e entendem os seus sonhos de liberdade. Respeitosos de sua cultura, não os atropelam com cães e fuzis, saindo sempre em defesa de seus direitos humanos.

Ao contrário daqueles que vêem inimigos do Brasil por toda parte, nunca essas entidades atentaram contra a soberania nacional, pelo menos que se tenha notícia. Nosso poder e soberania nacional, sempre soube, continua firme, pilastrado na hegemonia da federação fazendo-se presente em cada cidadão de norte a sul desse País pluriétnico. Se alguma ameaça essas ONGs representam, podemos dizer, não é, seguramente, contra a segurança da nação, e sim contra a insegurança vivida pelo povo excluído. É ameaçador saber que alguém se preocupa em ajudar aqueles que não têm voz animando-os a expressa-la em condição e mesmo nível com seus interlocutores. A soberania nacional, meu senhores, tem sido ameaçada sim, todos os dias, em desfavor dos indígenas de Japorã, Buriti, Panambizinho, e de diversas partes desses solo indígena brasileiro não demarcado.

É compreensível que essa solidariedade prestada por estrangeiros, que se dignam atravessar os mares para prestar apoio, possa vir a incomodar um Estado historicamente capitaneado por velhos coronéis e senhores do latifúndio: eles sempre souberam como fazer as coisas por aqui, do seu jeito, sem alarde e com métodos sempre duvidosos. As velhas cepas rurais ainda teimam em manter as rédeas desse Estado, exercendo o poder de mando sobre essas terras Guarani que ainda teimam pereniza-la na heráldica como Guaicuru. Não obstante, as minorias resistem.

Desde há muito os Guarani-Kaiowá têm seus corpos e identidade diluída entre os ervais e a aguardente que os consome diuturnamente em feiras e botecos ao longo das estradas pela grande Dourados, rumo ao sudoeste do Estado. Desde há muito Marçal de Souza grita no microfone dos mártires, as palavras de Sepé Tiarajú inculturadas aqui: –Êia boi, essa terá tem dono! Líderes ainda tombam e o território Guarani-Kaiowá ainda não está garantido a seus filhos e netos.

Enquanto senadores e políticos, fazendeiros e a chamada Justiça do Estado os visita, os observa, os filma e os vigia, eu me pergunto: –Quando nosso Direito há de mudar? Quando a nossa Lei brotará da consciência dos homens e não de velhos e surrados manuais e códigos que desprezam a coexistência social?

O Estado, senhores senadores, por estar invest
ido das funções de administrar a Justiça através do Poder Judiciário, e de regulamenta-la através do Poder Legislativo, deve chamar a si a tutela dos conflitos sociais, como esse de Japorã, sob o esteio da Lei e da Ordem, constituídas para a mantença da paz social. Mas este fim, não será alcançado somente através da interveniência estatal, e sim através das revoluções da própria sociedade quando o Estado, no exercício de suas funções, se demonstra incapaz de promovê-la. Isso porque o fenômeno jurídico se modula não somente com as grandes evoluções do alto da pirâmide social; ele também se transforma quando acontecem transformações da base dessa sociedade.

A paz em Japorã e nos demais territórios em disputa pelos povos indígenas no Mato Grosso do Sul e restante do Brasil, não depende somente de senadores e suas comissões, não depende somente de fazendeiros e indígenas; a paz no campo depende, sobretudo, da paz social. Paz social possível de ser concretizada somente através de uma nova Justiça, uma Justiça Social. Justiça Social que brote da soberania popular, cabendo ao Direito e seus Juizes tão-somente a função de administrá-la. Onde ficam seus territórios, os indígenas sabem; cabe ao Estado, tão-somente, a tarefa de demarcá-los.

Prof. Carlos Alberto dos Santos Dutra

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