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Estudo mapeia escravidão do negro em Mato Grosso do Sul

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10/09/2008 14h20 – Atualizado em 10/09/2008 14h20

A história dos negros ganha novos capítulos, até então desconhecidos sobre a presença destes povos no sul de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul.

Esta história é apresentada no livro “Cativos nas terras dos Pantanais”. O estudo é resultado de três anos de pesquisa para a dissertação de mestrado em História de Zilda Alves de Moura na Universidade de Passo Fundo (UPF), que teve a coordenação de seu orientador, o professor Mário Maestri. A obra faz parte da coleção Malungo.

 

As páginas do livro trazem uma abordagem da escravidão negra no Estado, normalmente ignorada pelos historiadores tradicionais, a partir de fontes primárias, como cartas de compra e venda de escravos; cartas de liberdade; relatório de presidentes das províncias, fontes manuscritos.

 

Entre o material da pesquisadora há, por exemplo, uma relação de fazendeiros e comerciantes que mantinham escravos em suas propriedades, tais como Barão de Vila Maria (ou Joaquim José Gomes da Silva), dono de várias fazendas na região hoje conhecida como Nhecolândia. A autora destaca que a utilização de mão de obra escrava nesses latifúndios deu-se na mesma desumanidade que ocorria nos outros estados brasileiros, e com grandes quantidades de cativos.

 

“Me senti desafiada a fazer essa pesquisa, pois nos materiais oficiais essa história era sempre contada a partir dos bandeirantes, pioneiros, além de que os negros nunca eram incluídos na história de MS, ao lado dos paraguaios, libaneses e outros povos. Ao contrário do que dizem muitos historiadores do Estado, aqui a escravidão não foi amena, ela teve uma trajetória que merecia ser estudada ”, disse Zilda Alves de Moura, que é de família proveniente do sertão de Unha de Gato, no Ceará, descendente de africanos, nativos e portugueses.

 

Além de ter acesso a vários arquivos públicos de diversos municípios, Zilda viajou para Portugal para aprofundar seus estudos. Sua pesquisa vai de 1726 a 1888, no período em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

 

Zilda, escritora de 40 anos faz um mapeamento em que aponta fortemente para a escravidão e resistência no sul de Mato Grosso. A chegada de famílias com escravos atinge desde municípios do leste sul-mato-grossense como a região que hoje pertence a Três Lagoas e Paranaíba a municípios mais antigos como Corumbá, a histórica Miranda, dentre outras regiões.

 

Um pioneiro na região de Três Lagoas, por exemplo, foi Protásio Garcia Leal, dono de uma propriedade rural na região da Piaba, às margens do Rio Verde, e um dos fundadores de Três Lagoas ao lado de Antônio Trajano e Luís Correia Neves Filho. Os registros mostram que a família Leal tenha trazido cerca de 21 escravos em 1.860 para a região e mais tarde outros 51 cativos.

Confira entrevista com a pesquisadora:

PerfilNews: Como viviam os cativos?

Zilda: Os cativos exerciam todo o tipo de trabalho. Fato comprovado no relato de Gervásio Rebello, em 1726, queixou-se dos rios, com muitas cachoeiras, “com grande trabalho e risco, e não menos sustos pela violência das águas e pelas muitas pedras, cachoeiras, itaipavas, contra-assaltos, despenhadeiros em que se descarregam as canoas e se arrastam por terra, e lançando-se depois ao rio, conduzidas as cargas às costas dos negros, sem que aproveite a vigilância a evitar o muito que se perde e se furta”.

Com o excesso de trabalho e a fome vieram as doenças. No rio Pardo, um relator anônimo lamentou-se das “misérias que nesse rio passei, são cem números, aí vem o que aqui chegou, sabe Deus como: os negros, uns doentes, outros caindo […]”. Os trabalhadores escravizados labutavam, mesmo doentes, maltrapilhos e famintos, enquanto o escravizador descansava por alguns dias. Destaque-se o grande número de trabalhadores escravizados necessários às operações exigidas nessas viagens e a vigilância constante do escravizador.

PerfilNews: Que documentos atestam para o trabalho escravo em nossa região?

Zilda- São vários os relatos, cartas, relatórios, sobre o comércio e utilização da mão-de-obra cativa em Mato Grosso. Cito um desses registros. Entre 1825 e 1829, em viagens pelo interior do Brasil, o francês Hércules Florence registrou que, nas terras de Mato Grosso, “um homem que conduzia seis ou sete escravos recém-chegados da África, meio nus e cobertos ainda da sarna que esses desgraçados apanham na viagem marítima […]. Perdeu-se e achou-se no meio dos campos, sem saber onde estava. Os negros passaram a noite tolhidos de frio”. Os africanos foram abandonados à sua própria sorte, pois o comerciante, a cavalo, saiu em busca de abrigo e comida. No dia seguinte, à tarde, retornou no local onde havia deixado os cativos, encontrando-os mortos. Na Fazenda Camapuã tornou-se um local de pouso daqueles que iam às minas de ouro de Cuiabá. De acordo com os relatos de viajantes que passavam pela região, aproximadamente entre 1726 e 1829, os escravos era maioria da população da fazenda. Já em 1872, (com a fazenda já falida), ainda existiam 75 trabalhadores escravizados sem contar os falecidos, libertos, arrematados ou dispersos.

PerfilNews: Quando começou a utilização de mão-de-obra escravizada em Mato Grosso?

Zilda: Nas terras do Mato Grosso, desde o início do século 18, foi utilizada a mão-de-obra escravizada. Com a diminuição das lavras de mineração da região, restaram poucas alternativas econômicas. A partir daí, parte da população dedicou-se mais intensamente a trabalhos relativos à agricultura, pecuária, etc. A exemplo de Cuiabá, outros núcleos populacionais foram sendo construídos rio abaixo até os pantanais da região sul mato-grossense.Assim, os documentos vão contando a história da “epopéia dos pioneiros” e, nas entrelinhas, lê-se o desenvolvimento da região mato-grossense alicerçado no duro trabalho da mão-de-obra servil, mantida sempre à margem do gozo substancial dos frutos que produzia.

PerfilNews: Como era o trabalho nas lavouras de subsistências?

Zilda: As fazendas emergentes e outras propriedades, principalmente as mais próximas dos núcleos urbanos garantiam uma produção de gêneros alimentícios com fins de abastecimento local: “como a lavoura canavieira, engenhos de aguardente, a criação de gado e uma diminuta lavoura de subsistência que abasteciam precariamente as zonas mineiras”.

Mesmo no final do século 19, encontramos registros de engenhos nas terras do Pantanal sul. Em um processo do fórum da comarca de Corumbá, em 1882, a viúva Cândida Alves Fleury herdou de seu falecido marido, Pedro José Machado Fleury, a fazenda Tapera, contendo campos para trezentas cabeças de gado vacum; oito bois e carros-de-bois; dois cavalos; canas, engenhos de açúcar e “escravos”. Quando das missões do Itatim, no sul de Mato Grosso, os espanhóis introduziram o gado na região. A criação do gado era solta nos campos, mais aos cuidados dos agentes naturais.

Na região, muito rapidamente surgiram novos povoadores e empreendedores que trataram de tirar proveito dessas novas oportunidades para a agricultura e sobretudo para o criatório do bovino e eqüino. Registramos vários escravos trabalhando como campeiros e peoneiros. O peoneiro era o responsável pelo serviço de campo, amansador de animais e auxiliar de boiadeiro.

PerfilNews: Quantos eram os cativos do barão de Vila Maria, na região de Corumbá?

Zilda: Conforme o livro de registros de 1877, “Classificação dos escravos a serem libertos da Junta de Corumbá”, constata-se que, mesmo após a morte do barão de Vila Maria e suas terras serem saqueadas, quando da Guerra contra o Paraguai, o número de trabalhadores escravizados contabilizava 41. É provável que o total fosse bem superior, tendo em vista que muitos escravistas não registravam seus cativos para não pagarem taxas
obrigatórias.

Ainda no livro de registros de 1877, “Classificação dos escravos a serem libertos da Junta de Corumbá”, registra 63 “proprietários” de 201 trabalhadores escravizados, sendo que 41 tinham um ou dois cativos, poucos possuíam de três a oito trabalhadores e três tinham de nove a onze. Mas é importante notar que um só escravista dominava 20,5% dessa lista de cativos, o barão de Vila Maria, nas fazendas em Corumbá.

PerfilNews: Qual era a população de escravos naquela região?

Zilda: Firmiano Firmino Ferreira Cândido: escravizava 24 cativos entre as idades de 14 e 54 anos, além de três crianças. Cabe ressaltar que, em 1862, o bispo diocesano, responsável pelas freguesias de Corumbá, encaminhou relação da população ao presidente da Província onde constava um contingente livre de 1.100 indivíduos; e uma população de 500 escravizados. Portanto, os cativos representariam, naquele período, 45% da população geral do município, isto é, quase a metade, um número bastante significativo, próximo ou igual às grandes províncias escravistas.

PerfilNews: E em Santana Do Paranaíba?

Zilda: Com relação a Santana do Paranaíba, o bispo diocesano, em 1862, mostrou-se bastante admirado com o crescimento da população que naquele ano eram duas mil pessoas: 1.400 livres e seiscentas escravizadas, representando a população cativa em 30%. O bispo relatou: “O que se pode afirmar por ser visível e incontestável é que a Villa de Sant’Anna do Paranahyba, e a Povoação de Albuquerque, hoje mais conhecida pelo nome de Corumbá, são os lugares da Província que nestes últimos anos mais têm crescido em população e comércio […].”

PerfilNews: E qual foi a participação dos Garcias na escravização em Mato Grosso do Sul?

Zilda: Os cativos do Sertão Garcia – José Garcia Leal, (21 cativos) irmãos, parentes, descendentes.

A Junta de Classificação de Santana do Paranaíba em 1874 relacionou 142 cativos, cabe destaque o grande número de trabalhadores escravizados pelos Garcias (irmãos, filhos, genros, sobrinhos, parentes dos sobrinhos e netos). Relaciono também os nomes de outros escravizadores contidos nos documentos, um deles, padre Fleury possuía 12 cativos.

A última relação de dados foi feita em 1883 e apresentou um total de 413 trabalhadores escravizados na região de Santana do Paranaíba.

PerfilNews: Como foi a escravização em Miranda?

Zilda: Em 1862, Miranda tinha uma população de 720 pessoas livres e cem cativos. Dez anos mais tarde, em 1872, o censo pós-guerra, apontou 142. Em 1876, o relatório da Província enumerou 207 trabalhadores escravizados.

PerfilNews: Como você conclui os estudos?

Zilda: Concluo contando como os trabalhadores escravizados alcançaram a liberdade no Brasil: sem acesso à terra, sem instrumentos de trabalho, sem famílias, sem capitais. No após Abolição (que faz 120 anos) o racismo antinegro, no contexto da produção assalariada, contribuiu e contribui para a manutenção de um verdadeiro exército industrial e rural de trabalhadores negros, mantidos como reserva estratégica de mão-de-obra em condições de super-exploração.

No período inicial da formação e povoamento do Brasil, e aqui especificamente na região sul-mato-grossense, matas foram derrubadas, sementes plantadas, engenhos e habitações construídos visando o desenvolvimento do capital dos mandatários da sociedade escravista, tudo isso feito, sobretudo às custas dos braços dos trabalhadores nativos e afro-descendentes escravizados.

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